quinta-feira, 27 de março de 2014

Shopping Center: cidade doente

Eu moro no sul da Colômbia, numa cidade chamada Neiva, a capital do departamento de Huila. Neiva é uma cidade pequena, em torno de 400mil habitantes - número que não está em crescimento, senão flutuando.


Localização. Fonte: Google Maps.

Neiva pela minha visão

Eu costumo dizer que Neiva é uma cidade "grande-pequena", com prós e os contras das duas características. Como cidade grande, tem violência, desigualdade social, (poucos) serviços, muito lixo e trânsito (tudo é uma questão de referência). E, como cidade pequena, tem tranquilidade (lê-se tédio), poucas distâncias a percorrer (você não leva mais de 30 minutos pra chegar em qualquer lugar da cidade), precariedade nos (poucos) serviços, transporte público praticamente inexistente, pouca visibilidade (isso mesmo: às vezes eu me sinto no Acre) e, como consequência, pouca fiscalização/muita corrupção. 

Panorâmica da cidade pela minha janela. Arquivo pessoal.
Aqui não há um negócio local, senão serviços; pois é uma cidade de passagem, a referência das cidades menores próximas do sul. Tem aeroporto, hospital, restaurantes e tem até shopping center (com cinema)! Não tem muita coisa pra fazer, a não ser aproveitar a natureza próxima.

"Arquitetonicamente" falando, faltam coisas básicas: não há planejamento urbano, projetos de urbanização, as ruas são uma vergonha, faltam praças e locais públicos no mínimo "usáveis" (agradáveis e seguros), etc... Enfim, não estamos na Suíça.


Então o que fazer em Neiva? Alguma pista? 

Outro dia vi uma mulher no mercado do shopping (atenção: no mercado! Tipo Carrefour!) de salto AGULHA, dourado, cheio de brilhos, uma roupa colada, maquiadíssima, com o cabelo todo arrumado e com o marido a tira colo. Não, ela não estava vindo de uma festa, ela estava FAZENDO COMPRAS! E tenho testemunha. Isso me assustou. Muito. Já tinha visto esse "fenômeno" antes (não com um salto daqueles), mas como estive viajando, me desconectei um pouco e fazia tempo que não ia ao mercado, acho que tinha me esquecido. E pensei: isso está errado, muito errado.

Então, na mesma semana que levei esse "choque", li um artigo chamado: Shopping Center: sintoma de uma Cidade Doente, que fala, basicamente desse fenômeno que eu vivo aqui: numa cidade onde o poder público não faz o MÍNIMO, o espaço privado aparece como a solução (1).

A grande diversão das pessoas daqui é colocar sua melhor roupa e levar toda sua família ao shopping para ver e ser visto. Você vê famílias inteiras (digo umas 6, 7 pessoas): mãe, pai, filhos, sogra, sogro, papagaio, etc; visivelmente humildes, andando de mãos dadas, lado a lado (e fechando o corredor todo), passeando no shopping, olhando acanhadas pras vitrines e aproveitando o ar condicionado das lojas (sim, porque o shopping não tem ar, só as lojas). Você também vê peruas (ricas e pobres) com seus saltos agulhas iguais à que eu vi no mercado, ostentando aquela roupa cara da loja de grife ou o marido. Você vê de tudo. É quase como a praia (local público) no Rio de Janeiro: um lugar democrático. Só que você não vê as pessoas "locais", de verdade. Você vê uma mentira, vê o que elas querem ser e o que querem mostrar. As pessoas se "fantasiam" pra festa da ostentação. Resultado: aos domingos, o ÚNICO shopping da cidade fica lotado.

Centro comercial San Pedro Plaza. Atualmente o único de Neiva (mas não por muito tempo). Arquivo pessoal.


Cidade doente

Aí, algum gênio (precisa ser gênio?) percebeu que fazer shoppings centers em Neiva é um excelente negócio. Todos, dos humildes aos mais endinheirados, gastam no shopping. Resultado: em frente à esse único shopping, estão construindo mais um, grande (e espero que tenha ar-condicionado!) e mais outros 2 simultâneos à esse em outras partes da cidade.

Apesar de todos estarem eufóricos pela chegada desses shoppings (confesso que até eu estou), isso é uma grande loucura. É uma grande inversão de valores! É o poder público feliz em passar a responsabilidade pra um terceiro (e que provavelmente ainda encheu seu bolso de "plata"). 
Quanto mais shoppings são construídos, menos investimentos são feitos para uma reforma urbana, que melhore o fluxo, infraestrutura e o transporte público. Quando um shopping é construído, cria-se uma zona de concentração de pessoas em determinado local, enquanto outras áreas da cidade se tornam ociosas. Essas áreas ociosas, tornam a cidade morta, estéril, além de se tornarem redutos de violência. Precisamos pensar nas ruas como locais de convivência em comum e não como mero espaço de passagem de carros. A rua é o espaço de todos, e não de ninguém.
Cidades que funcionam, são aquelas que são atraentes pelo seu espaço público. Você vê vida nas ruas, bares, cafés, praças, comércio, parques... Você QUER andar na rua, você VIVE a cidade. Nova York, Paris, Madrid ou até a zona sul do Rio... Todas têm esse encanto. Por isso, em cidades interessantes, você caminha, vê gente comum, pessoas "locais" e de verdade: feias, bonitas, pobres, ricas, com roupa de grife ou não, salto agulha ou de chinelinho.


Mas, afinal, o que é a cidade?

Alguém concorda comigo. Arquivo pessoal.
A cidade é você? É a sua casa? Sua rua? É o shopping? É o seu condomínio? Qual a definição de cidade? Sabe quando você está no avião e olha pela janela aquelas luzinhas intermitentes brilhando ali, juntas, aglomeradas? Isso são pessoas, isso é uma cidade.

Tem um livro chamado "O que é a cidade" (2), da Raquel Rolnik. Se você é estudante de arquitetura ou arquiteto e nunca leu esse livro, shame on you. Rolnik responde à essas perguntas dizendo que a cidade é como um ímã (3), que une pessoas e que reflete as características dessas pessoas, desse povo, sua expressão. A cidade é, portanto, parte da identidade de quem mora nela.



Por isso, uma cidade doente significa um povo doente.


Acredito que o sucesso de um shopping e toda essa euforia aqui gerada pela construção de mais shoppings, está diretamente relacionado ao fracasso da cidade. Quanto mais shoppings, condomínios e espaços privados, mais doente está a cidade. Neiva já já vai entrar em coma e ninguém está vendo isso.



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(1) Além dos shoppings, aqui existe também o fenômeno dos condomínios fechados, pelo mesmo motivo: ausência total do poder público.
(2) O que é a cidade, Raquel Rolnik. São Paulo: Brasiliense. 1995. (disponível para download no Ebah e em outras partes da internet)
(3) Leia também neste blog: Urbanismo Ecológico.

Um comentário:

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